Ensaio Crítico: Preservar para Quem? Memória, Território e Justiça Social na Obra de Maria Dolores Alves Cocco
Por : Zilda Maria A Matheus – Naturo Academic Research Institute
A preservação do patrimônio cultural no Brasil historicamente oscilou entre o normativo e o excludente. Durante décadas, prevaleceu uma visão monumentalista, elitista e distante das vivências reais das comunidades. Em Política de Preservação de Bens Culturais Ambientais (2020), a arquiteta e urbanista Maria Dolores Alves Cocco propõe uma guinada crítica nesse campo. O livro articula uma abordagem interdisciplinar que une patrimônio, memória e meio ambiente como dimensões de um mesmo território vivo e em disputa.
Maria Dolores Alves Cocco é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mogi das Cruzes (1982), mestre em Restauração Arquitetônica pela Escuela Nacional de Conservación, Restauración y Museografía (1987), no México, e doutora pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (1996). Com trajetória docente e pesquisadora voltada para a sustentabilidade do patrimônio urbano e a valorização dos saberes locais, sua obra se inscreve numa perspectiva crítica e latino-americana da cidade.
A autora parte de marcos internacionais da preservação, como a Carta de Burra (1979) e a Convenção da UNESCO (1972), mas não se detém neles. Seu foco é tensionar a aplicação desses modelos em contextos periféricos, onde a desigualdade territorial é a regra e o apagamento cultural atinge, sobretudo, populações vulnerabilizadas. Em diálogo com Choay (2001), Certeau (1994) e Lefebvre (2001), Cocco defende que a memória não é um artefato, mas um processo vivo, que deve ser reconhecido como expressão legítima da cultura urbana.
A potência do livro está na crítica ao tecnicismo patrimonial, que transforma a preservação em ferramenta de gentrificação, em vez de prática de justiça. Para a autora, não basta preservar edifícios: é preciso preservar modos de vida, relações simbólicas e vínculos coletivos. Nesse sentido, sua obra conecta-se com os princípios da justiça espacial de Milton Santos (2008) e da antropologia urbana crítica de García Canclini (2006), propondo um modelo de política pública enraizado nos territórios e nos sujeitos históricos.
No cenário atual, em que projetos urbanos continuam ignorando a diversidade cultural e ambiental das cidades, a leitura da obra de Cocco se torna urgente. Sua defesa de uma “ecologia patrimonial” que contemple o ambiente construído, a natureza urbana e os saberes comunitários oferece um novo horizonte para a formulação de políticas culturais sensíveis, inclusivas e sustentáveis.
Este ensaio não pretende esgotar a complexidade da obra, mas apontar para sua relevância teórica e prática, tanto para o campo acadêmico quanto para a sociedade civil. Que sua leitura inspire políticas de escuta e não de imposição, de reconhecimento e não de apagamento.
Referências bibliográficas
COCCO, Maria Dolores Alves (Org.). Política de Preservação de Bens Culturais Ambientais. Curitiba: CRV, 2020. ISBN 978-65-5578-080-2. DOI: 10.24824/978655578080.2.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EdUSP, 2008.
CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da emergência. São Paulo: Edusp, 2006.