Governança do Conhecimento na Era da Inteligência Artificial: Uma Análise de Modelos e a Emergência da Abordagem Humano-IA
Por : Dr. Marcos Camargo Campagnone – FGV-SP
Resumo
Este artigo analisa a transformação da governança do conhecimento impulsionada pela ascensão da Inteligência Artificial (IA), especialmente a generativa. Em um cenário de crescente volume informacional e concentração de poder em plataformas digitais, a governança — entendida como o conjunto de normas que orientam a geração, validação, compartilhamento e uso do saber — torna-se um campo de disputas e inovações cruciais. A análise parte de modelos estabelecidos, como a governança em rede, as hélices de inovação e o acesso aberto, examinando como são impactados e ressignificados pela IA. Em seguida, aprofunda-se em abordagens emergentes, com destaque para o modelo de Governança Humano-IA (HAIG), que propõe um framework dinâmico para gerir a relação de confiança, autonomia e responsabilidade entre humanos e sistemas inteligentes. Por meio de uma análise comparativa, o artigo argumenta que a integração sinérgica desses modelos, aliada a uma governança adaptativa e eticamente fundamentada, é essencial para construir uma ecologia do saber mais justa, democrática e preparada para os desafios do futuro tecnológico.
Palavras-chave: Governança do Conhecimento; Inteligência Artificial; Modelo HAIG; Hélices de Inovação; Acesso Aberto; Ética em IA.
1. Introdução
Vivemos em um oceano de informações cuja dinâmica é cada vez mais modelada pela Inteligência Artificial (IA), sobretudo em sua vertente generativa. A promessa de democratização do conhecimento, potencializada por essas tecnologias, coexiste paradoxalmente com riscos de concentração de poder em plataformas dominantes, fragmentação do acesso e a criação de “bolhas” epistêmicas automatizadas. Nesse contexto, a governança do conhecimento, compreendida como o conjunto de “regras do jogo” que direcionam a forma como o saber é gerado, validado, compartilhado e utilizado, emerge como um campo de estudo e prática de extrema relevância. A influência da IA não apenas acelera processos, mas redefine a própria natureza dos atores e das relações de poder envolvidas. Este artigo explora como os modelos tradicionais de governança se adaptam a essa nova realidade e analisa o surgimento de novos paradigmas concebidos especificamente para a interação humano-máquina.
2. Modelos Consolidados de Governança em Releitura
A governança do conhecimento possui um arcabouço teórico consolidado que, hoje, é posto à prova e ressignificado pela IA. Três modelos principais — a governança em rede, as hélices de inovação e o acesso aberto — oferecem lentes valiosas para compreender essa transição.
A governança em rede representa um afastamento de hierarquias rígidas em favor de interações colaborativas entre múltiplos atores, como governos, universidades, corporações, sociedade civil e comunidades locais. Essa abordagem valoriza a corresponsabilidade e o reconhecimento de saberes plurais, promovendo um ecossistema mais democrático. Contudo, a sua eficácia depende da criação de mecanismos deliberativos claros e de políticas públicas inclusivas, sob o risco de, na ausência destes, apenas reproduzir desigualdades sob uma aparência de participação. A IA pode tanto ampliar o escopo e a eficiência dessas redes quanto, se não governada adequadamente, exacerbar vieses e concentrar a capacidade de influência em quem detém o controle dos algoritmos.
Na esteira da colaboração, os modelos de hélices de inovação evoluíram para descrever a interação sistêmica entre diferentes esferas sociais. O modelo original, a Hélice Tríplice (universidade-empresa-governo), foi expandido para a Hélice Quádrupla, que incorpora a sociedade civil, e posteriormente para a Hélice Quíntupla, que adiciona o meio ambiente como um ator central (CARAYANNIS; CAMPBELL, 2012). Essas formulações ampliaram o escopo da inovação, tornando-a mais democrática e orientada à sustentabilidade. A IA surge como um catalisador para essas interações, com potencial para fortalecer os elos e acelerar a criação de soluções para desafios complexos. Uma coletânea de estudos sobre a Hélice Quíntupla e a IA, por exemplo, explora como a tecnologia pode impulsionar economias sustentáveis e ecossistemas empreendedores ao mediar as relações entre academia, indústria, governo, sociedade e meio ambiente (“QUINTUPLE INNOVATION HELIX…”, 2025). Os desafios, no entanto, persistem na articulação intensa e persistente que tal integração exige, além de barreiras como a instabilidade de recursos financeiros e a ausência de métricas de impacto que sejam verdadeiramente inclusivas.
Finalmente, o movimento de acesso aberto (Open Access) constitui um pilar fundamental para a democratização do conhecimento, combatendo as barreiras financeiras que limitam a circulação da produção científica. Modelos como o Diamond Open Access, que não impõem custos nem a autores nem a leitores, representam o padrão mais elevado de justiça epistêmica. No Brasil, plataformas como a SciELO (Scientific Electronic Library Online) exemplificam o potencial dessa abordagem, embora enfrentem desafios crônicos de sustentabilidade financeira e a pressão de um sistema de avaliação acadêmica que ainda privilegia periódicos de prestígio internacional. No contexto da IA, o princípio do acesso aberto se expande para além dos artigos científicos, tornando-se uma demanda crucial para o acesso a dados, algoritmos e modelos de IA, como forma de fomentar a inovação distribuída e evitar o cerceamento da pesquisa por um oligopólio de grandes corporações (“NOW MORE THAN EVER…”, 2025).
3. A Emergência de Modelos de Governança para a Era da IA
A sofisticação crescente dos sistemas de IA, que passam de meras ferramentas a agentes com graus variados de autonomia, demanda arcabouços de governança que transcendam os modelos existentes. Nesse cenário, surgem novas propostas teóricas, como a governança adaptativa e, de forma mais estruturada, o modelo HAIG. Pesquisas recentes destacam que a velocidade da IA generativa torna obsoletos os ciclos regulatórios tradicionais, exigindo uma governança adaptativa, caracterizada pela agilidade, monitoramento contínuo e mecanismos de feedback rápido para ajustar as normas à medida que a tecnologia evolui (“GENERATIVE AI…”, 2024). Em paralelo, no âmbito corporativo, a discussão avança para a conexão entre teorias éticas clássicas — como o utilitarismo, a deontologia e a ética das virtudes — e a criação de estruturas práticas para a adoção responsável da IA, garantindo que o desenvolvimento tecnológico esteja alinhado a valores humanos fundamentais (MADANCHIAN; TAHERDOOST, 2025).
Dentro desse movimento, destaca-se o emergente modelo de Governança Humano-IA (HAIG — Human-AI Governance), proposto como uma abordagem orientada à construção de uma relação de confiança entre humanos e máquinas (ENGİN, 2025). Este modelo afasta-se de uma visão estática e propõe um framework dinâmico, estruturado em três níveis inter-relacionados. O primeiro nível compreende as dimensões da governança, que são a distribuição da autoridade decisória, a autonomia de processo e a configuração da responsabilidade. Em vez de definir pontos fixos, o HAIG analisa essas dimensões como contínuos, reconhecendo que a relação entre humanos e IA se modifica gradualmente à medida que a capacidade e a autonomia dos sistemas aumentam. O terceiro nível é o dos limiares, que representam pontos críticos ao longo desses contínuos. Ao atingir um limiar — por exemplo, quando um sistema de IA passa de uma função de recomendação para uma de decisão autônoma em um diagnóstico médico —, a estrutura de governança precisa ser reavaliada e adaptada. O modelo HAIG oferece, portanto, um olhar mais refinado e processual sobre como a governança deve se ajustar à crescente agência dos sistemas de IA, sendo especialmente relevante para a regulação de setores sensíveis como saúde e finanças.
4. Análise Comparativa e Síntese dos Modelos em Face da IA
A transição para uma governança do conhecimento efetiva na era da IA não ocorrerá pela substituição de um modelo por outro, mas pela sua articulação sinérgica e reinterpretação. Os modelos tradicionais oferecem a base principiológica, enquanto os novos arcabouços fornecem as ferramentas analíticas para lidar com a especificidade da agência algorítmica. A governança em rede, ao propor uma estrutura horizontal e colaborativa, tem seu escopo de participação ampliado pela IA, que pode conectar atores de forma mais eficiente. Contudo, essa mesma tecnologia impõe a necessidade de reforçar mecanismos de transparência e justiça epistêmica para mitigar vieses algorítmicos que poderiam marginalizar saberes não hegemônicos. Similarmente, os modelos de hélices de inovação, que se baseiam na interação entre múltiplos setores da sociedade, encontram na IA uma poderosa ferramenta para fortalecer seus elos e acelerar ciclos de desenvolvimento. O desafio, no entanto, reside em garantir que essa aceleração seja acompanhada de sustentabilidade, coordenação e inclusão, evitando que a tecnologia aprofunde assimetrias entre os atores envolvidos. Por sua vez, o princípio do acesso aberto, focado na remoção de barreiras ao conhecimento científico, é intensificado pela IA, que transforma a demanda por acesso a publicações em uma necessidade mais ampla de acesso a modelos, dados e infraestrutura computacional para garantir uma competição justa e a soberania digital.
Nesse panorama, o modelo HAIG não se apresenta como um substituto, mas como um complemento indispensável e mais granular. Enquanto os modelos anteriores tratam a IA primariamente como um objeto ou uma ferramenta a ser governada, o HAIG oferece um referencial dinâmico para governar a relação contínua de confiança e a distribuição de poder entre humanos e a IA. Ele se move para além da pergunta “quem governa?”, que permeia as redes e hélices, para questionar “como governamos a interação com agentes não humanos que participam ativamente da tomada de decisão?”. Dessa forma, o HAIG fornece a linguagem e a estrutura para gerir a autonomia e a responsabilidade da IA de maneira processual e adaptativa, algo que os modelos anteriores não foram projetados para fazer com a mesma especificidade.
5. Conclusão: Rumo a uma Ecologia do Saber para a Era da IA
Modernizar a governança do conhecimento na era da Inteligência Artificial exige uma abordagem integradora, que harmonize as forças colaborativas das redes, a sinergia setorial das hélices e o imperativo democrático do acesso aberto. A introdução de modelos como o HAIG é fundamental, pois amplia nossa capacidade de resposta às transformações disruptivas, focando na complexa relação de agência compartilhada entre humanos e algoritmos. O futuro do saber não depende apenas de garantir o acesso à informação, mas de construir um ecossistema que promova participação equitativa, justiça epistêmica, reconhecimento de saberes diversos e, crucialmente, confiança nas novas realidades tecnológicas.
Nesse esforço global, a América Latina, com sua rica pluralidade cultural, sua tradição de pensamento crítico e sua criatividade institucional, encontra-se em uma posição privilegiada. A região pode e deve liderar a construção de uma governança do conhecimento que seja, ao mesmo tempo, pluriversal em seus valores, ética em seus princípios e tecnologicamente consciente em suas práticas, assegurando que a revolução da IA sirva ao desenvolvimento humano em sua plenitude.
Referências
CARAYANNIS, E. G.; CAMPBELL, D. F. J. The Quintuple Helix innovation model: global warming as a challenge and driver for innovation. Journal of Innovation and Entrepreneurship, [S. l.], 2012.
ENGİN, Z. Human-AI Governance (HAIG): A Trust-Utility Approach. [S. l.: s. n.], 2025.
GENERATIVE AI Needs Adaptive Governance. arXiv, 6 jun. 2024. Disponível em: [Inserir URL caso disponível]. Acesso em: 27 ago. 2025.
MADANCHIAN, M.; TAHERDOOST, H. Ethical theories, governance models, and strategic frameworks for responsible AI adoption and organizational success. Frontiers in AI, [S. l.], 2025.
NOW MORE than ever, AI needs a governance framework. Financial Times, 8 fev. 2025.
QUINTUPLE Innovation Helix and AI. Journal of Innovation and Entrepreneurship, [S. l.], 2025.
- Dr. Marcos Camargo Campagnone
- Doutor em Administração – FGV-SP